31/08/2015

"A conquista da felicidade" - Diário de leitura

Um de meus divertimentos favoritos é visitar livrarias. Aqui em Brasília, as que me proporcionam mais prazer são quaisquer uma das duas lojas da Livraria Cultura existentes na capital federal. Nelas sinto que a experiência bibliófila ainda é considerada, não se trata de mero comércio de livros. Não tem - nem poderia ter - o charme, a beleza e a singularidade de uma Shakespeare & Co ou de uma Lello, que são citadas em livros e em filmes e se transformaram em pontos turísticos, respectivamente, em Paris e no Porto, porém a Livraria Cultura consegue equilibrar bem a necessidade de lucro com a preservação de um ambiente amigável a quem tem paixão por esse secular objeto, com formato simples e funcional, carregado de mundos dentro de si.
Pois bem, esse trololó todo foi para introduzir o primeiro (e talvez único) diário de leitura de A conquista da felicidade, de Bertrand Russell, filósofo e matemático britânico que viveu na transição entre os séculos XIX e XX. A Livraria Cultura, em parceria com a editora Nova Fronteira, lançou uma série de edições em capa dura, com tratamento gráfico simpático, composta por livros, de alguma forma ou em certo sentido, clássicos. Um deles é o que comento aqui. Não o conhecia, mas a seu autor, sim. Formado que sou em Filosofia, tenho um bom livro dele sobre a história da matéria. Além disso, há outro, mais ou menos na mesma linha, que ficou razoavelmente conhecido no Brasil, o História do Pensamento Ocidental. Tendo ótimas referências de Russell, assim como da qualidade de tudo quanto envolve a Livraria Cultura, interessei-me pelo livrinho de capa dura laranja, com meras 160 páginas, sobre um assunto que não poderia ser de maior interesse: a felicidade.
Antes de adentrar o conteúdo da parte já lida até o presente, como este é um blog eminentemente sobre leitura e sobre livros, em que as escolhas e os métodos importam, devo acrescentar que A conquista da felicidade furou a fila agora, porque o clube de leitura que mantive, por alguns meses, com colegas de trabalho, foi retomado. Depois de discutirmos longamente sobre vários critérios e formarmos uma lista de obras de interesse comum, sobre as quais cada um teria poder de veto, decidimos recomeçar os trabalhos com esse. Sendo curto, e considerando as obrigações, inclusive de leitura, que todos temos, pareceu sensato não reiniciar com grandes ambições. Já me interessara pelo livro, mas o impulso decisivo foi o que venho de explicitar.
Para que se entenda minha apreciação momentânea do livro, a qual, adianto, não é boa, confesso que as expectativas eram altas. Eu estava curioso por verificar como um filósofo e matemático de envergadura intelectual razoável, cético e ateu confesso em uma época em que isso era mais socialmente impactante do que ainda é, trataria o tema da felicidade, objeto de tantos livros de autoajuda e de religião corriqueiramente banais e fáceis, lotados de clichês e de frases digeríveis, porque superficiais. Dificilmente se fala em felicidade sem uma busca de sentido para a vida fora dela.
O comentário desse diário de leitura considera os primeiros 30% do livro. Estou nos primeiros capítulos da parte I, intitulada "Causas da infelicidade". Infelizmente, o tom do autor parece sempre ser de superioridade, como se a vivência individual dele fosse referência para o resto da humanidade, sem que, para isso, demonstre ter vivido algo realmente revelador e de interesse comum. Em um dos passos mais confessionais até o presente, ele limitou-se a dizer que odiava a vida na adolescência e "estava continuamente à beira do suicídio", mas apaixonou-se pela matemática e aprendeu "a ser indiferente" a si e a suas deficiências. Falta aí a necessária minúcia para convencer-nos de que o aprendizado dele foi ilustrativo e pode ser aproveitado por todos. Como em toda narrativa, não importa tanto o quê quanto o como.
Logo nas primeiras páginas, deparei-me com juízos preconceituosos que, se, por um lado, podem ser atribuídos à época e seriam perdoáveis mesmo a pessoas de pensamento mais avançado então, por outro, dão um fastio em quem os lê atualmente e não é recompensado dessas opiniões superadas - para dizer o mínimo - por um conteúdo excepcional quanto à conquista da felicidade. Ao exemplificar como as pessoas não aproveitam a vida devidamente, Bertrand Russell vem-me com esta:
"Vez por outra, num veículo lotado, pessoas negras dão mostras de estarem se divertindo, mas despertam indignação por causa desse comportamento excêntrico e acabam caindo nas mãos da polícia devido a um fato: ficar alegre por ocasião de feriados é ilegal." 
Mais à frente, quando anuncia o objetivo do livro, diz que é sugerir uma cura (!) "para a infelicidade cotidiana normal que se abate sobre quase todas as pessoas nos países civilizados". 
Calma, que lá vem mais:

"Um homem que nunca tenha desfrutado o belo em companhia da mulher que ama não experimentou plenamente o poder mágico de que são capazes todos esses prazeres." 
"As pessoas, cuja perspectiva da vida faz com que sintam tão pouca felicidade em fazer filhos acham-se biologicamente condenadas. Não demorará muito até que sejam substituídas por algo mais alegre e festivo." 

Já nutro robustas dúvidas sobre a capacidade de Russell dizer-me algo muito relevante sobre a felicidade, até o final do livro, depois dessas pérolas. A felicidade, na opinião dele, está aparentemente vinculada a uma visão estereotipada do desenvolvimento e das pessoas de pele negra. O texto é antipaticamente indiferente às pessoas que não mantêm relação erótico-amorosa com mulheres e muito provavelmente, ao imaginar a pessoa destinatária de seu livro, não estava pensando em lésbicas, mas sim em homens heterossexuais como ele. Por último - e lembro que estou comentando pouco menos do primeiro terço da obra -, o autor relaciona idiotameante a decisão de não ter filhos a uma condenação biológica.
Acho que idealmente um livro sobre a felicidade deveria tornar o leitor feliz pelos recursos que a linguagem escrita oferece. A forma deveria participar da felicidade de que se trata. Por exemplo, pode ser lúdico, mobilizar figuras de linguagem, fazer esquecer o tempo e dar vontade de continuar lendo, como quem, por estar feliz, não nota o relógio girar. Não é o caso de A conquista da felicidade, até a parte em que parei, o que é mais grave, quando se considera que não é um livro técnico ou rigorosamente teórico.
Espero voltar com opinião mais favorável depois.

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